Foto: Eduardo Maretti
A morte transforma as pessoas, na imprensa, em um título e alguns atributos. O intelectual Marco Aurélio Garcia (1941-2017), que morreu ontem, se transformou em "ex-assessor especial de Lula e Dilma". É só o que as manchetes anunciam.
O único encontro pessoal que tive com Marco Aurélio Garcia, quando pude conversar com ele em particular (e fiz a foto que ilustra este post), foi há apenas dois meses, em rápida entrevista de exatos 10 minutos e 33 segundos para a RBA, antes de um encontro reservado que ele teria com alguns jornalistas e ativistas, do qual não participei porque ainda tinha de escrever a matéria (que está aqui).
O papo foi de certa forma frustrante, já que ele era uma
figura de pensamento amplo e os poucos dez minutos e meio eram claramente
insuficientes para uma entrevista satisfatória, mas era o tempo que tínhamos
acordado, para não atrasar o debate para o qual ele se dirigira.
Ele não falava sobre conjuntura de maneira direta e suas
respostas não eram fáceis. Como era historiador, precisava construir um
panorama e estabelecer inúmeras relações entre os fatos políticos e históricos para responder a uma pergunta sobre a crise política ou o que poderíamos esperar do atual
cenário obscuro do país, por exemplo.
O respeito que Marco Aurélio inspirava era visível quando havia reuniões do PT. Suas aparições -- que não eram comuns,
mas se restringiam a eventos importantes do partido -- eram motivo de euforia: você via alguns repórteres da grande imprensa ávidos por algumas palavras que
fossem de Marco Aurélio Garcia, os mesmos repórteres que dali a pouco
escreveriam as reportagens sobre o mensalão ou, mais
recentemente, sobre a Lava Jato, reportagens que obviamente alimentariam e alimentam até hoje as "provas" da força-tarefa. Afinal, algumas palavras dele poderiam dar
brilho a qualquer reportagem, mesmo que mentirosa ou medíocre.
Os repórteres ávidos não são bobos. Afinal, Marco Aurélio era um dos principais quadros do PT, um dos que de fato não se
deixaram vencer pelo apego ao poder.
Como um dos arquitetos da política externa de Lula e Dilma, ele
foi dos que preferiram atuar mais nos bastidores e na construção do que sob os
holofotes.
Talvez por isso, um dos maiores trunfos da "grande
imprensa" em relação a ele foi ter conseguido flagrá-lo "fazendo um
gesto obsceno enquanto assistia a um telejornal", o que foi exibido em
manchetes como um troféu, já que era preciso de alguma forma "pegar"
Marco Aurélio. Mas nunca pegaram.
Ele se manteve íntegro até o fim.
Segundo seu amigo Roberto Amaral, do velho PSB que já não
existe, Marco Aurélio tinha planos. Diz Amaral, sobre o último encontro com ele,
no artigo "Tributo a Marco Aurélio de Almeida Garcia":
"Estivemos juntos, pela última vez, há cerca de dois
meses. Marco Aurélio, alegre, nos apresentou seu novo apartamento paulistano,
da qual destacava, como salões nobres, sua cozinha-copa-sala de estar “montada
como um bistrô”, dizia ele, e o espaço reservado para sua imensa e rica
biblioteca que ainda não conseguira pôr em ordem. Eu lá estava, na companhia
da cineasta e produtora Cláudia Furiati que desejava seus conselhos para um
filme (que ainda pretende rodar) sobre a esquerda latino-americana. A visita
começou com um belíssimo jantar, elaborado por ele enquanto degustávamos um
majestoso vinho sacado de sua adega. A noite não tinha pressa. Terminamos esse
encontro, que eu jamais pensei ser o último, ouvindo-o dissertar sobre o plano
de seu livro de memórias. O infarto traiçoeiro nos proibiu dispor de uma peça
literária de grande porte, e de um depoimento crucial sobre a política
brasileira de nossos dias."
Que vá em paz.
Um comentário:
A morte traiçoeira... leva um intelectual em um momento que sentimos falta deles, intelectuais.
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